sábado, 16 de março de 2013

Elis

 Aos Nossos Filhos

Elis Regina

Outro dia, navegando pela internet, li um comentário sobre a cantora Elis Regina que me fez refletir sobre os caminhos que a música está percorrendo. Era algo do tipo “não sei por que endeusam tanto a Elis. Ela era uma cantora comum...” A princípio, causou-me certo espanto. Depois, tentei decodificar os sentimentos daquela que deixou palavras tão estranhas aos meus sentimentos. Não sei a idade dela, mas suponho que seja jovem o suficiente para não ter acompanhado o trabalho de Elis e ter sofrido a influência destas “cantoras intensas” norte-americanas. Nada contra – aliás, gosto muito de algumas, mas temos de admitir que, depois que viraram febre na mídia internacional, notas altíssimas e, às vezes, até mesmo gritos viraram obrigação de qualquer cantora. Não sei quanto a você, leitor(a). mas a mim cansa um pouco o excesso, aquela necessidade de mostrar, a cada compasso, todo o virtuosismo da profissional. Também acho que a melodia se perde em determinados momentos com tanto malabarismo vocal e excesso de melismas. Para dizer a verdade, algumas músicas parecem ter origem árabe quando a cantora começa a frasear infinitamente, como que procurando a “boa” nota. Tecnicamente, também é perigoso, pois cantar sempre no limite da extensão, para provar que é bem dotada, pode gerar danos irreparáveis às cordas vocais. Acho que isto tudo faz a canção em si ficar em segundo plano, independentemente da qualidade de sua melodia e letra.

Elis não possuía este estilo. Ela simplesmente guardava cada um de seus recursos para o momento certo, como que nos oferecendo uma nova surpresa cada vez que a música pedia – exatamente porque ela trabalhava pela música. Elis era intérprete e até um pouco atriz: vestia a personagem de cada canção como se tivesse sido escrita para ela. Quantas Elis pudemos ouvir ao longo de sua vida produtiva? A forte de Maria, Maria, a debochada de Cai Dentro ou a sofrida de Atrás da Porta? E há muitas outras se você percorrer o seu repertório, pois ela não precisava expor a sua voz para realmente dizer alguma coisa. Ela expunha a si mesma, visceralmente, com delicadeza e também com avidez. Era a intérprete.

Algumas são excelentes cantoras românticas, por exemplo, mas seguem sempre o mesmo padrão. Elis sempre nos brindava com alguma novidade, com alguma sutileza, e isto enriquecia a sua arte. Além de ter um domínio fantástico de afinação e ritmo, a sua inteligência musical sempre fez com que usasse os seus dotes vocais a serviço da mensagem que o compositor queria passar. E isto também é respeito. Na fase em que trabalhou com o fantástico Cesar Camargo Mariano, o talento de Elis achou um músico capaz de valorzar todo o seu talento com arranjos e harmonias inesquecíveis. Grande dupla que acrescentou tanto à MPB.

Por isto tudo, sinto pela moça que redigiu o comentário que deu origem a esta crônica e por todos aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer o trabalho de Elis Regina e de outras cantoras fabulosas que colocaram o seu talento à disposição da essência da canção e não a usavam simplesmente como pano de fundo para se exibir.


     No vídeo, Atrás da Porta (Chico Buarque - Francis Hime) ao vivo (sem data)

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